O dia em que conheci o Sargento Pimenta


Por Maurício Rigotto
Colecionador

Lembro perfeitamente do dia em que o conheci. Assim como todo mundo se recorda onde estava na manhã de 11 de setembro de 2001, eu lembro com precisão o momento em que coloquei a agulha sobre seus sulcos pela primeira vez. 

Ele é apenas quatro anos mais velho que eu, mas quando eu nasci seus genitores já haviam se separado. Fomos nos conhecer lá pelo início dos anos oitenta, na virada da minha infância para a adolescência. Àquela altura eu já havia descoberto que seria um roqueiro, já comprava discos do Led Zeppelin, Pink Floyd, Clash, Dylan, e até já tinha uma coletânea dos Beatles. Fui pela primeira vez na casa do meu amigo Beto, que ainda era cachorro pequeno na época, porque ele dizia que o seu pai tinha um monte de discos de rock. Chegando lá, fiquei chocado, pois todas as pessoas que eu conhecia tinham, no máximo, uma centena de discos que cabiam no minúsculo espaço reservado aos LPs nos racks dos aparelhos 3 em 1, mas o pai do Beto possuía a mesma quantidade de discos que eu via nas lojas. No mesmo instante eu soube o que eu queria: ter milhares de discos de rock. 

Ficávamos fascinados pelas capas e, enquanto os outros amigos iam jogar bola no campo da pracinha, passávamos as tardes estudando os discos do Bocajão, tentando descobrir quais eram as grandes bandas e os grandes caras, quais os melhores discos. Colocávamos os LPs do Cream, Stones, Who, Hendrix, Traffic, e assim fomos formando nosso gosto pelo rock, uma febre juvenil que nunca acabou, pois mesmo agora, próximo a me tornar um quarentão, sigo um roqueiro inveterado.


Numa dessas tardes de estudo me deparei com aquela capa instigante: os Beatles trajando coloridos uniformes da era vitoriana, cercados por inúmeras personalidades e simbolismos. Coloquei o tal Sgt Pepper´s Lonely Hearts Club Band na vitrola e ficamos extasiados, em estado de choque; com certeza a vida não seria mais a mesma após esse momento sublime. 

Tudo era inovador. Os primeiros ruídos que saíram das caixas de som foram de uma orquestra afinando os instrumentos segundos antes da execução da faixa-título, uma insânia sobre a banda do Sargento Pimenta, apresentando o “the one and only Billy Shears”, repleta de trompetes, trombones e tubas, exalando uma euforia vibrante. Sem intervalo, emendam uma balada com vocais do baterista Ringo Starr chamada "With a Little Help From My Friends" e a lisérgica e surrealista canção de John Lennon, "Lucy in the Sky with Diamonds", recheada de “tangerine trees”, “marmalede skies” e “kaleidoscope eyes”. 

Paul McCartney dizia que tudo está melhorando na faceira "Getting Better", recordava a vida pacata na fazenda em "Fixing a Hole" e a fuga de casa de uma garota de dezessete anos em "She’s Leaving Home", que fala dos conflitos de gerações entre pais e filhos, com um belo arranjo de cordas ao fundo. A canção circense de John, "Being for the Benefit of Mr Kite", encerra o lado um do vinil repleta de gaitas e órgãos Hammond, num clima festivo de fanfarra. Ficamos atônitos, aturdidos pela excentricidade sonora que havia invadido nossos ouvidos, e estávamos apenas na metade. Hora de virar o disco e descobrir o que o outro lado nos reservava. 


O lado dois inicia com a única canção não composta pela dupla John e Paul. Trata-se de "Within You Without You", do guitarrista George Harrison. Fiquei petrificado com a estranheza dos sons emanados pelas cítaras indianas, acompanhadas de dois violinos, três violoncelos, violão, tabla, dilubra, swordmandel e tamboura, tocados pelos discípulos de Ravi Shankar na Asian Music Center of Finchley. A letra fala da filosofia hindu que George estava estudando. É a parte do disco conceitual que não foi estimulada pelo LSD vigente na época, pois foi gravada regada a incenso e maconha, e isso é passado ao ouvinte, que mesmo sem recorrer a nenhum artifício alucinógeno fica completamente chapado após ouvir a canção. 

Após a incursão indiana de George, Paul canta a bela "When I’m Sixty-Four", uma canção iniciada lá nos tempos do Cavern Club, nos primórdios da banda, e só então finalizada. É uma alusão ao sexagésimo-quarto aniversário de seu pai, ocorrido no ano anterior, e tem uma letra em que o jovem Paul, então com 25 anos, se imagina quando tiver 64. "Losing my hair, many years from now...” era a coisa mais distante que ele poderia vislumbrar na época. E pensar que no momento em que escrevo isso, Paul já passou dos sessenta e quatro, outros dois beatles nem sequer sobreviveram para completar essa idade, o disco já fez quarenta anos e em pouco tempo eu também terei 40! Na canção, os Beatles são acompanhados por um naipe de três clarinetes, e o que se ouve lembra aquelas canções do jazz e do vaudeville dos anos 1920 a 1930. 

O álbum tem prosseguimento, ainda com Paul nos vocais, interpretando a alegre "Lovely Rita". A próxima faixa, "Good Morning, Good Morning", foi composta por John após ter tido a centelha ao ver um comercial da Kellogg’s Corn Flakes, o popular sucrilhos. A letra fala do dia-a-dia da vida suburbana, enquanto a banda é acompanhada por um enorme naipe de sopros. Antes da faixa derradeira, incluem uma curtinha: "Sgt Pepper´s Lonely Hearts Club Band (Reprise)", desta vez cantada pelos quatro e não apenas por Paul. 


O álbum encerra com "A Day in the Life", talvez a maior obra-prima do disco. Consiste na união de duas músicas inacabadas e refere-se quase que exclusivamente a notícias que John havia lido no jornal, como o acidente automobilístico e os buracos em Lancashire. Uma orquestra sinfônica com quarenta e um integrantes foi contratada para acompanhar os Beatles nessa faixa. Vestidos de fraque, os músicos da orquestra receberam chapéus de festa de aniversário e narizes de palhaço. Patas de gorila foram colocadas nas pontas dos arcos dos violinos e balões de gás foram amarrados aos arcos dos violoncelos, tudo para dar um clima festivo para a gravação. Os músicos receberam partituras em branco, e cada um por si deveria tocar as notas mais graves e mais agudas indicadas pela batuta do maestro e produtor George Martin, propiciando um som evoluindo “do nada até o fim do mundo”, como definiu John Lennon. 

"A Day in the Life" termina com alguns compassos de algazarra e o imenso eco-acorde final, fechando o álbum como a tampa de um sarcófago. “Ouve-se” então o primeiro instante de silêncio desde que a audição se iniciou, pois até então cada segundo do havia sido preenchido com sons, sem intervalos. Porém, o que se pensa ser um silêncio é na verdade um apito canino que emite um som em 15 kilociclos em uma nota de 20.000 hertz de freqüência, inaudível para os ouvidos humanos e somente audível para os cães. A idéia de John era que, no momento em que o disco acabasse, os cachorros levantariam as orelhas.

Tudo mudou após a primeira audição dessa obra de arte. Minha vida não poderia mais ser a mesma de uma hora atrás. Uma revolução de novas estéticas sonoras fervilhava em meu cérebro. Juntamente com o som de uma banda de rock, ouviam-se ruídos até então inimagináveis, sinos badalando, palmas, sons de circo, cítaras orientais, naipes de cordas e metais diversos, violoncelos à la Villa-Lobos, uma orquestra exuberante, piano, contrabaixo, bateria e guitarras unidas a sons pré-fabricados em estúdio, lembrando até o concretismo de Stockhausen, que não por acaso também tem seu rosto incluído na capa de
Sgt Pepper´s. A cada nova audição descobríamos mais detalhes nas entrelinhas das canções. Naquele dia, nasceu a vontade de comprarmos guitarras para “brincarmos de Beatles”.

Uma vez, perguntado se tinha algum arrependimento na vida, o produtor George Martin confessou que seu grande erro fora ter deixado a canção "Penny Lane" de fora de
Sgt Pepper´s Lonely Hearts Club Band. A canção foi lançada em compacto três meses antes do lançamento do long-play. A letra retrata um mergulho nostálgico e poético de Paul McCartney nas lembranças da sua infância em uma rua de Liverpool, e a música conta com trompetes inspirados nos Concertos de Bradenburgo de Johann Sebastian Bach. 

A outra obra-prima que se desgarrou do rebanho de faixas do Sargento Pimenta é o lado B do compacto de "Peny Lane", "Strawberry Fields Forever", onde John Lennon incursiona por um território onírico, convidando o ouvinte já na primeira frase, “let me take you down ...”, a embarcar numa viagem onde “nothing is real, nothing to get hungabout” ("nada é real, nada há para se preocupar"). Realmente, se esse super-single tivesse sido incluído no disco, o que já é perfeito ficaria ainda mais grandioso, pois tudo faz parte de um mesmo conceito.


Desde esse inesquecível dia voltei a ouvir esse álbum muitas centenas de vezes, e a cada nova oitiva o encantamento que ele provoca permanece intacto. Compramos as guitarras para “brincar de Beatles” e formamos uma banda, mas como não tínhamos uma bateria, o Turco tocava a máquina de costura da vó Araci com a maior destreza. 

Hoje tenho os milhares de discos que desejava naquele momento da juventude, incluindo o Sgt Pepper´s em versões mono, estéreo, remasterizado e CD. Naquelas tardes, trancados em uma sala, na penumbra, escutando discos e descobrindo novas sonoridades e informações, despertei uma paixão pelo rock que perdura até hoje. Acredito que muito da minha personalidade e de meus gostos pessoais se devam a esses períodos vespertinos, e o dia em que eu conheci o Sargento Pimenta será sempre um grande marco em minhas reminiscências.

Comentários