Duas décadas sem Dom Raulzito


Por Maurício Rigotto
Colecionador
(publicado originalmente no caderno Blitz do jornal Diário da Manhã)

Anos oitenta. A década da minha adolescência. Época em que carrinhos, Playmobil e Falcon foram deixados de lado dando lugar a novas e instigantes descobertas: sexo, rock, literatura, boemia.

A paixão pelo rock e por discos aflorou cedo e de modo intenso. Todo o dinheiro que caía na minha mão era investido em LPs do Led Zeppelin, Pink Floyd, Beatles, Stones, Who, Dylan, Hendrix e muitos outros. No Brasil acontecia uma explosão de bandas nacionais, que caíram nas graças da mídia devido ao sucesso do Rock in Rio.

Poucas dessas bandas me atraíam. Eu era fã do Camisa de Vênus, adorava ir aos shows dos baianos. Achava o Ira! uma grande banda, considerava o Ultraje a Rigor engraçado, e aqui no Rio Grande do Sul, os Replicantes, TNT e Cascaveletes eram as bandas divertidas de se ir a um show. No mais, o restante dos grupos nacionais de sucesso não me empolgavam. Claro que eu ia aos shows dos Titãs, Legião Urbana, Paralamas ou qualquer outra banda que viesse tocar por esses lados, mas não era o que eu gostava de ouvir em casa. De rock nacional, eu preferia ouvir Mutantes e Secos & Molhados, bandas de décadas passadas que já haviam acabado naquela época.

Porém, eu tinha um ídolo do rock brazuca. Eu era (e sou) superfã de Raul Seixas. Comprei todos os discos de Raul e ouvia-os exaustivamente, além de colecionar fitas de vídeo, áudio e reportagens acerca do roqueiro baiano. Posso dizer que a trilha sonora da minha adolescência foi composta por rock inglês, rock norte-americano e Raul Seixas (impressionante como algumas coisas não mudam com o passar dos anos). A idolatria por Raul me levava a usar camisetas com o seu rosto estampado e um botton com o símbolo da Sociedade Alternativa.

Além de ir aos shows nacionais por aqui, também fugia para Porto Alegre, ou São Paulo, de carona, quando havia algum show internacional de alguma banda que eu apreciasse, mas assistir Raul Seixas ao vivo, nunca, ele não fazia mais shows e estava sumido da mídia. Mesmo lançando alguns discos, não aparecia na TV e as parcas notícias sobre ele informavam que estava com sérios problemas de saúde gerados pelo alcoolismo.

No final de 1988, Marcelo Nova, ex-vocalista do Camisa de Vênus, em turnê divulgando o seu primeiro disco solo, convida Raul para participar de alguns poucos shows. Esses poucos shows acabaram se transformando em uma turnê nacional, enquanto Raul e Marcelo trabalhavam em um disco em parceria. No início de junho de 1989, eu abri um matutino de Porto Alegre e lá estava um anúncio que me deixou eufórico: Raul Seixas e Marcelo Nova iriam tocar no Gigantinho no dia 10 de junho. Passei uma semana em estado de excitação e ansiedade aguardando a chegada do sábado para finalmente ver ao vivo meu ídolo do rock tupiniquim. No dia 10 lá estava eu, bem defronte ao palco, na primeira fila. O show começou com Marcelo Nova, acompanhado de sua nova banda, a Envergadura Moral, tocando músicas do seu primeiro disco solo e sucessos do Camisa, além de uma cover de "I Want You (She’s So Heavy)", dos Beatles.

Quando Marcelo chamou Raul Seixas ao palco a casa veio abaixo. A multidão que lotava o ginásio gritava ensandecida pelo roqueiro. Raul subiu ao palco trajando um jaqueta de couro branca com franjas e cantou "Maluco Beleza", seguida de "Cowboy Fora-da-Lei". Fiquei extasiado de emoção, mas também chocado com a má forma física de Raul, que após alguns passos trôpegos e claudicantes, permaneceu estático defronte ao microfone, errando partes das letras e mal conseguindo tocar sua guitarra Guild semi-acústica. Sua aparência também assustava, pois tinha o rosto deformado pelo inchaço decorrente de seus excessos etílicos. Raul tocou "Rock das Aranhas", "Sapato 36", "Al Capone" e outros sucessos, além de fazer duras críticas ao governo do presidente Sarney, o que demonstra que se "nossos ídolos ainda são os mesmos", nossos políticos corruptos também não mudaram.

A dupla apresentou duas novas músicas que entrariam no álbum A Panela do Diabo, que seria lançado em agosto: "Carpinteiro do Universo" e "Pastor João e a Igreja Invisível", para após encerrar apoteoticamente com "Sociedade Alternativa". O público saiu satisfeitíssimo em presenciar e ovacionar nosso roqueiro maior. Foi a única oportunidade que a minha geração teve de assistir Raul ao vivo. Todos sabiam que não haveria uma próxima vez. Sai do Gigantinho e fui caminhando até a rodoviária, onde quase congelei durante uma das madrugadas mais frias de que tenho recordação. Passei a noite tremendo e batendo os dentes de tanto frio, mas não importava, sentia-me realizado, tinha visto Raul Seixas ao vivo.

Sabíamos que Raul não viveria muito, mas ninguém imaginou que seria tão rápido. Dois meses depois, exatamente há vinte anos, no dia 21 de agosto de 1989, a notícia de sua morte tomou conta do país. Raul sucumbira aos 44 anos. Lembro que eu e alguns amigos desolados sacrificamos um velho guarda-chuva, recortando-o em tiras para usarmos como tarjas pretas em sinal de luto.

Felizmente, como o próprio Dom Raulzito dizia: "Os homens passam, mas as músicas ficam".

Comentários

  1. Eu estava nessa show de Raul no Gigantinho... foi emocionante, no momento que ele entrou ficou claro prá todo mundo que nunca mais íamos vê-lo de novo. Estou enganado, trocando as bolas, ou tinha uma enfermeira no palco? Mas a força da música dele fez toda a diferença. Foi estranho receber a notícia da morte dele, dois meses depois, liguei a rádio e estranhei que tocou duas músicas dele seguidas, nunca tocava, aí tem... não deu outra.

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