Cassiano e a soul music brasileira


Por Sérgio Martins
Colecionador e Jornalista
(matéria publicada originalmente no site da revista VEJA)

No começo dos anos 70, uma trupe de cantores negros brasileiros que adoravam a música dos cantores negros americanos chacoalhou o show biz nacional. Eles ostentavam enormes cabeleiras black power e recheavam suas letras de palavras como "beibé" ou "bróder", que roubavam do inglês e aportuguesavam.

Por outro lado, nunca deixaram de incluir em suas composições elementos como uma boa cuíca ou uma levada de baião. Desse cruzamento, nasceu uma soul music brasileira, de inegável qualidade. Em pouco tempo, porém, o gênero se viu espremido entre a MPB conservadora e a novidade do tropicalismo. Alguns o hostilizaram. Outros o vampirizaram, sem que seus artistas recebessem o devido crédito.

Quase trinta anos depois, está chegando às lojas o principal testemunho do brilho da soul music nacional. O disco se chama Coleção e reúne catorze criações do cantor e compositor Cassiano, maior expoente dessa tendência musical, ao lado de Tim Maia e da Banda Black Rio.

Três discos, que estão fora de catálogo há vinte anos, serviram de matéria-prima para o CD, compilado pelo cantor Ed Motta. Desprezados pelas gravadoras que os lançaram anteriormente, eles são disputados a tapa em sebos. Cassiano pertence à classe dos "penitentes do espírito" – expressão cunhada pelo crítico americano Bill Flanagan para definir os artistas que criam pérolas de suas experiências pessoais, sem nenhuma mediação. A canção "A Lua e Eu", por exemplo, foi composta em 1973 depois de uma tremenda fossa causada pelo fim de um casamento.

Outros clássicos do músico são "Primavera" e "Eu Amo Você", dois dos maiores sucessos da carreira do cantor Tim Maia. Eles se conheceram nos anos 60, quando tentavam arranjar emprego numa agência especializada em exportar shows de mulatas. Até a morte de Tim, em 1998, a amizade teve altos e baixos. Tim respeitava Cassiano a ponto de se recusar a cantar na frente dele – tinha medo de falhar e ser corrigido. Por outro lado, passou a perna no amigo em algumas ocasiões. Vários de seus discos têm a participação de Cassiano, que não ganhava nada por isso. "O Tim dizia que eu não me vendia por dinheiro e aproveitava para não me pagar", lembra o músico.

Cassiano atingiu seu auge em meados dos anos 70, quando "A Lua e Eu" foi incluída na trilha sonora da novela
O Grito, da Rede Globo. Na época, o programa Fantástico, da mesma emissora, dedicou-lhe um clipe, em que ele aparece como uma espécie de Marvin Gaye tropical, desfilando de terno branco na orla carioca. No fim da década, começou a decadência. Logo depois de ser dispensado de sua última gravadora, a PolyGram, em 1979, o compositor contraiu tuberculose e perdeu parte do pulmão.

Hoje, mora num modesto apartamento no bairro carioca do Flamengo e vive dos direitos autorais de suas canções. Para sua sorte, nunca se gravou tanto Cassiano. O grupo de pagode Pixote recriou o hit "A Lua e Eu" e a cantora Ivete Sangalo vai incluir a música "Postal" em seu próximo CD.

Ele sonha com uma volta aos discos, mesmo sabendo que é difícil competir com a banalidade do pagode e da axé music. "A soul music é muito sofisticada para os dias de hoje", diz.

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