Gelo Preto em São Paulo


Maurício Rigotto
Colecionador e Escritor

Sexta-feira, 27 de novembro. Após dezoito horas de viagem, cheguei por volta das quinze horas em frente ao estádio Morumbi, em São Paulo. Quem me conhece sabe da aversão que tenho por futebol, consequentemente, o único evento que me motiva a ir a um estádio é um show de rock. Dentro de algumas horas, o AC/DC, uma das maiores bandas do mundo, faria seu único show no Brasil depois de treze anos sem se apresentar no país. O grupo está realizando uma grande turnê mundial, a primeira em oito anos, divulgando o elogiadíssimo álbum Black Ice, lançado no ano passado. A turnê é uma das mais lucrativas e bem sucedidas da história, lotando estádios ao redor do mundo, e em São Paulo não seria diferente.

Àquela hora da tarde, uma fila gigantesca contornava toda a circunferência externa do estádio. Milhares de pessoas vestidas com camisetas pretas com o logotipo do AC/DC aguardavam ansiosamente a abertura dos portões, programada para as dezoito horas. A esmagadora maioria das pessoas usava um diadema na cabeça com os chifres vermelhos que se tornaram uma das marcas de Angus Young, a estrela da banda. Outros estavam vestidos de Angus, com seu característico uniforme de colegial. 

Resolvi não desperdiçar a tarde em uma fila. Sei que poderia entrar no estádio ao anoitecer e ainda conseguir um bom lugar para ver o show. Resolvi dar um passeio e embarquei em um ônibus em direção ao centro. Quando o coletivo estava na Av Rebouças, perto da Av Paulista, o trânsito simplesmente parou em um grande engarrafamento. Saltei ali mesmo e peguei o metrô até a Estação da Luz, para dar uma volta no Mercado Público e na rua 25 de março. 

Cheguei lá já perto das dezoito horas e resolvi logo voltar ao Morumbi. Peguei um táxi nas imediações e comecei uma tortuosa e desesperada viagem de volta ao estádio. O trânsito da capital paulista estava infernal, até o chofer comentou que nunca havia enfrentado um engarrafamento daquela magnitude. Rebouças, Paulista, Rua Augusta ... milhares de veículos sem se mexer, um inferno. Para tentar fugir do caos da Rebouças, o motorista optou pela Consolação. Andamos por mais de uma hora, mas no bairro Jardins o táxi se viu novamente preso no congestionamento. 

Comecei a ficar seriamente preocupado, até que optei em descer do táxi e tentar um ônibus, pois em seus corredores havia fluxo. Quando embarquei no ônibus, caiu uma chuva torrencial que ensopou a todos que estavam no estádio. Após quase uma hora de trajeto, desci do ônibus, já sem chuva, às vinte e uma horas. Ainda precisava caminhar mais de dois quilômetros para chegar ao Morumbi. Com o passo apressado, adentrei ao portão de acesso pontualmente as vinte e uma horas e trinta minutos. Fui revistado pelos policiais e corri para dentro. No exato minuto em que me vi entre as setenta mil pessoas que lotavam o local, as luzes se apagaram e um dos maiores espetáculos que já presenciei teve início.

Com as luzes apagadas, só o que se via era um mar de chifres vermelhos luminosos, pois mais da metade da multidão usava o adereço. Nos enormes telões de alta definição, uma bela animação teve início, mostrando um trem descontrolado em altíssima velocidade, com os membros do AC/DC em seus vagões. O guitarrista Angus Young, personificado como um demônio, alimentava o fogo da caldeira jogando carvão com uma pá, quando duas gostosonas surgem e o seduzem, simulando masturbação e sexo oral em sua enorme língua. Repentinamente, elas o chutam e puxam o freio de emergência do comboio. Enormes faíscas são produzidas pelas rodas do trem em atrito com os trilhos. O desenho animado termina com uma locomotiva de verdade, de seis toneladas, invadindo o palco ainda expelindo fumaça. 

A banda surge e empolga o público com "Rock’n’Roll Train", faixa do novo disco. Mais de duzentas caixas de som amplificam o volume com perfeição, proporcionando uma das melhores sonorizações que já ouvi em grandes arenas. Após a abertura, os clássicos "Hell Ain't a Bad Place to Be" e "Back in Black" levaram a multidão a um frenesi coletivo. Surpreendentemente, a próxima faixa, "Big Jack", do novo álbum, foi cantada em uníssono pela platéia, como se fosse algum dos antigos clássicos da banda. Aliás, parece que o grupo só tem clássicos no repertório, pois se seguiram "Dirty Deeds Done Dirt Cheap", "Shot Down in Flames" e "Thunderstruck", antes da música que nomeia o novo disco e turnê, "Black Ice". 

A energia e o entrosamento impressionam. Angus Young e o vocalista Brian Johnson comandam o espetáculo, correndo todo o tempo por toda a extensão do gigantesco palco, enquanto os demais membros - Malcolm Young (guitarra), Cliff Williams (contrabaixo) e Phil Rudd (bateria) - mantém a base com extrema competência. 

No blues "The Jack" Angus Young larga a guitarra para fazer um strip tease, livrando-se de seu uniforme de colegial enquanto a plateia grita o refrão "she’s got the Jack". Ao abaixar a bermuda, Angus revela uma cueca com o logo do AC/DC em suas nádegas. Em "Hells Bells", um grande sino desce ao palco e Brian Johnson pendura-se como um Tarzan em seu cipó na corda que faz badalar o pêndulo. 

Depois de "Shoot to Thrill", outra nova canção, a ótima "War Machine", e mais clássicos: "Dog Eat Dog", "You Shook Me All Night Long" e "TNT". Em "Whole Lotta Rosie", uma gigantesca boneca com seios fartos e coxas grossas é inflada sobre a locomotiva. Em "Let There Be Rock", imagens de todos os discos e todas as fases da banda são projetadas nos telões, incluindo a imagem de Bon Scott, o carismático vocalista falecido em 1980. 

Angus percorre uma passarela até um elevado bem no centro do estádio, onde solou sua Gibson SG por cerca de dez minutos enquanto era ovacionado pelo público e coberto por uma chuva de papel picado, num dos momentos mais emocionantes do espetáculo. 

A banda se despede e ninguém arreda o pé. O grupo volta para o bis com "Highway to Hell" e encerra o show com "For Those About to Rock (We Salute You)". Ainda aturdida, a plateia é brindada por uma queima de fogos de artifício. Foram duas horas de show que pareciam ter durado alguns poucos minutos. Não é exagero dizer que foi um dos melhores shows de rock que já passaram em terras tupiniquins desde que o gênero foi inventado.

Fiquei bebendo algumas cervejas defronte ao estádio enquanto via a multidão lentamente se dispersar, em um estado de emoção e encantamento que somente um grande show pode proporcionar. 

Domingo que vem repetirei a dose em Buenos Aires. Na próxima semana eu volto para contar como foi. Black ice!

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