Prateleira do Cadão: Restos de Nada, pioneiros do punk brazuca


Por Ricardo Seelig
Colecionador

A história do Restos de Nada se confunde com a história do punk rock no Brasil. O grupo surgiu em 1978 na Vila Carolina, em São Paulo, do encontro entre o guitarrista Douglas Viscaino (que vinha do Organus) e o baixista Clemente Nascimento. Os dois se conheceram, trocaram ideias e descobriram vários gostos em comum. A dupla curtia bandas como MC5, New York Dolls e Stooges, que chegavam até as suas mãos através do cunhado de Douglas, que conseguia LPs importados desses e outros grupos com marinheiros estrangeiros que traziam os plays escondidos em suas bagagens, contrabandeando-os para o Brasil.

A dupla logo virou referência para quem gostava do som agressivo e repleto de atitude do punk rock. Essa boa reputação fez Ariel (vocal) e Carlos Charles (bateria) juntarem-se a Douglas e Clemente. Entre os quatro, Carlos era o que possuía um conhecimento musical mais apurado, pois, além da bateria, tocava violão e piano. Com uma formação calcada na MPB engajada, empolgou-se com a energia do trio e decidiu aplicar seu background, pavimentado pela música de protesto à ditadura militar dos anos setenta, a serviço de um grupo de rock and roll. Assim nascia o Restos de Nada.

A banda fez alguns shows na nascente cena punk paulistana do final dos anos setenta e começo dos oitenta, mas divergência ideológicas acabaram por separar o quarteto original. Douglas e Ariel começaram a colaborar para a OSI - Organização Socialista Internacional junto com Irene Incaó, também da turma da Carolina e amiga da escola, que logo teria participação importante na trajetória da banda. Para quem não sabe e não viveu aquele período negro da história do Brasil, a Organização Socialista Internacional teve papel fundamental pela sua atuação nos movimentos por liberdade política não apenas em nosso país, mas no mundo todo, principalmente nos movimentos estudantis.

Já Clemente queria curtir, tocando seu som e vagando pelas ruas. Foi inevitável seguir caminhos opostos, e Clemente acabou indo para o N.A.I. (Nós Acorrentados do Inferno) - onde já chegou chegando, sugerindo a mudança no nome do grupo para Condutores de Cadáveres. Douglas e Ariel convidaram a já citada Irene para a vaga de Clemente, mas esse line-up durou pouco, e, no final de 1980, com a saída de Carlos Charles e Irene, o Restos de Nada encerrou as suas atividades.

Douglas, Ariel e Irene montaram o Desequilíbrio - nome da composição mais conhecida do Restos de Nada -, mas a banda durou pouquíssimo tempo. Clemente formou o Inocentes em agosto de 1981 com o parceiro do Condutores de Cadáveres, o guitarrista Callegari. Em 1982 Ariel retomou a parceria com Clemente no Inocentes, enquanto Callegari fazia o caminho inverso, saindo da banda e juntando-se a Douglas no Disciplina. Após o Disciplina, Douglas montaria com Irene - agora responsável apenas pelos vocais - a Alma de Andróide, que seguiu firme e forte no underground até 2000. Já Ariel saiu dos Inocentes e montou o Invasores de Cérebro em 1988.

No meio dessa confusão toda, o Inocentes fez carreira lançando os elogiados - e até hoje muito atuais, diga-se de passagem -
Pânico em SP (1986) e Adeus Carne (1987). Animados pela boa repercussão dos discos, mais maduros e com as cicatrizes abertas pelas diferenças do passado devidamente fechadas, Clemente, Douglas, Ariel e Charles juntaram forças novamente em 1987 para enfim gravar em disco as composições do Restos de Nada, criadas entre 1978 e 1980. A banda assinou com a Devil Discos, entrou em estúdio e saiu de lá com um dos mais importantes registros do punk rock tupiniquim.


Restos de Nada, o disco, contém treze faixas e, apesar da gravação bastante crua - ou justamente por causa disso -, é um retrato fiel dos primeiros tempos do punk no Brasil. O play abre com a faixa que dá nome à banda e ao disco, onde o quarteto joga suas cartas na mesa sem cerimônia. A sensacional "Ódio" é uma pérola, com sua hilária e provocativa letra falando a respeito do asco do grupo pelos policiais paulistas: "lá vem os ratos, sujos e nojentos". O pau come em faixas como "Deixem-me Viver", "Ninguém é meu Igual", "Somos Todos Escravos de um Balde de Lixo" e "Classe Dominante". "Direito à Preguiça" tem um clima bem similar ao que o Inocentes mostraria em seus primeiros álbuns, enquanto o quarteto "Esperança de Liberdade", "Rebeldia Incontida", "R.D.N.I." e "Estrutura de Bronze" encerra o play sem deixar pedra sobre pedra. Como curiosidade e registro histórico, a última faixa do álbum traz trechos de um show de 1979 e da apresentação no programa Olimpop, da TV Tupi, em 1980.

Mas, inegavelmente, o grande destaque do LP, aquele faixa que vale o disco, é o hino "Desequilíbrio", considerada por muitos pesquisadores uma das primeiras composições da história do punk nacional. Trilha sonora de uma geração que teve seus sonhos soterrados pelo autoritarismo e pela violência da ditadura imposta pelos militares, é um autêntico grito de liberdade e inconformismo da juventude paulista - e brasileira - daquela segunda metade dos anos setenta. E, o mais triste, é perceber que, apesar de composta há mais de trinta anos, sua letra continua atual, infelizmente.

O álbum recebeu uma versão em CD lançada pela própria Devil Discos, mas atualmente tanto o LP quanto o CD estão fora de catálogo. Em 2001 Douglas e Ariel colocaram novamente a banda na ativa, acompanhados do baixista Luiz e baterista Cuga. Ao mesmo tempo, lançaram de forma independente
Restos de Nada II, que reúne gravações realizadas com um gravador de fitas K7 e traz a banda tocando em um terreno baldio da Vila Carolina, em São Paulo, em 20 de setembro de 1980, e mais quatro faixas inéditas - "Eu Tenho Medo", "Eles Vêm e Vão!", "Opressores Não Mais!" e "Pré-História" - gravadas em julho de 2001 no estúdio Kuaker, em São Paulo.

Falar em punk rock no Brasil e não citar o Restos do Nada é impossível. A banda foi fundamental para a solidificação e propagação do gênero em nosso país, além de ter parido um dos discos mais importantes não só do estilo, mas do próprio rock brazuca. Em um tempo em que o termo "clássico" é banalizado todos os dias, sendo aplicado a trabalhos pra lá de questionáveis, vê-lo associado a um disco como
Restos de Nada é um alento e uma benção.

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