"Aladdin Sane": rock and roll de luxo


Por Emílio Pacheco
Blog do Emílio Pacheco

De vez em quando aparece alguém na Internet pedindo sugestão de disco para conhecer o trabalho de David Bowie. Não é fácil dar uma resposta porque, na verdade, existem muitos David Bowies. Nenhum artista conseguiu explorar estilos tão diferentes como ele. É difícil acreditar que o glam rocker com influência de Rolling Stones, Lou Reed, T. Rex e Iggy Pop de 72/73 é o mesmo cantor de voz empostada imitando o som dos negros americanos em 1974. Que por sua vez é o mesmo compositor experimental com influência de Brian Eno, Neu e Kraftwerk de 1977. Tem também o roqueiro "new wave" de 1980 e, claro, o ídolo pop de 83-87, que por muito tempo foi o preferido dos brasileiros (aí se incluindo a trilha sonora do filme "Labirinto"). São só exemplos. Bowie nunca parou de ousar e surpreender.

Pois bem: embora eu aprecie todas as fases de sua carreira, o "meu" David Bowie preferido é o de 71 a 74. Existe uma coletânea chamada "The Best of David Bowie 1969-1974" que inclui somente o filé mignon desse período. É raro aparecer uma compilação contendo justamente as faixas que eu escolheria, mas é o caso dessa. De qualquer forma, gostaria de destacar o LP que me tornou fã dele. Eu tinha 12 anos e vinha acompanhando as matérias sobre David Bowie na revista Pop em 1973. O visual daquele cantor me deixava intrigado. Parecia um super-herói alienígena. Quando um tio meu quis me dar um LP no meu aniversário de 13 anos, pedi "o último de David Bowie" sem ter nem idéia do que viria. Arrisquei. Veio "Aladdin Sane". Bingo! Nos anos 50, a unanimidade era Elvis Presley. Nos anos 60, todos gostavam dos Beatles. Pois nos anos 70, cada um teve o "seu" ídolo na música. Eu acabara de encontrar o meu.

Em geral, o álbum que é considerado o grande clássico do David Bowie dessa época é o anterior, "The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spíders From Mars". Sem dúvida é um disco extraordinário, rock de garagem da melhor estirpe, urgente, cortante, com algumas baladas como contraponto. Mas "Aladdin Sane" é uma versão de luxo de Ziggy. Bowie, pela primeira vez, entrou no estúdio já como um astro, com direito a um supertime de músicos de apoio. Além da banda Spiders From Mars que já o acompanhava – Mick Ronson na guitarra, Trevor Bolder no baixo e Woody Woodmansey na bateria – veio, entre outros, o pianista Mike Garson, para dar um toque de sofisticação. O resultado foi uma obra-prima de finesse e rock and roll. Eu há muito tempo já decidi que "Ziggy Stardust" e "Aladdin Sane" são meus dois discos preferidos de Bowie, empatados em primeiro lugar.

O disco abre com "Watch That Man", um rock com influência direta de "Brown Sugar", dos Rolling Stones (Bowie voltaria a beber das mesmas águas na instrumental "Speed of Life" do álbum "Low" em 1977). A mixagem coloca a voz de Bowie no mesmo nível dos instrumentos, outra característica copiada dos Stones. O produtor Ken Scott explicou ao biógrafo David Buckley que chegou a fazer uma segunda mixagem realçando mais o vocal, mas preferiu a primeira. Destaque também para as cantoras que fazem o backing, entre elas Linda Lewis.

A seguir vem a faixa título. Existe um
bootleg com gravação da platéia em que "Aladdin Sane" é tocada somente na guitarra, lembrando "Honky Tonk Women" dos Rolling Stones e também "Cocaine" na versão de Eric Clapton (que ainda não tinha sido gravada). Provavelmente era essa a idéia de Bowie ao compor a música. Mas nas mãos do pianista Mike Garson, a música se transformou numa jóia rara de leveza, num clima onírico. Esta é, sem dúvida, uma das melhores gravações da obra de David Bowie O solo de piano tornou-se um clássico – Mike Garson afirma que já foi perguntado sobre ele mais do que sobre todo o resto de seu trabalho, sozinho ou acompanhando outros músicos. Quem ouvir a hoje rara edição em vinil lançada no Brasil em 1973 pela RCA vai notar que estão faltando as notas finais de piano. A falha é compreensível, pois realmente parece que a música termina. Eu próprio só notei esse detalhe quando ouvi a edição importada anos depois.

Outro belo momento do disco é a faixa seguinte, "Drive In Saturday". Sua estrutura básica em ritmo ternário não difere muito de "Rock and Roll Suicide", do disco anterior. Mas o sintetizador e as vozes de apoio lhe conferem um toque majestoso e imponente. Existe uma edição especial do álbum com um CD bônus em que Bowie canta esta composição em versão acústica. Mas a gravação original é imbatível.

"Panic in Detroit" tem uma batida de influência africana complementada pela guitarra de Mick Ronson. Uma das vocalistas ganha mais destaque, provavelmente Linda Lewis. Em 1974, a introdução desta faixa foi usada no programa humorístico "Satiricom", da Rede Globo, enquanto um dublê de Alice Cooper aparecia dançando.

O lado A do vinil encerra com um dos melhores rocks do disco e de Bowie: "Cracked Actor". Por muito tempo eu me perguntei como esse petardo marcado por uma guitarra distorcida não havia sido lançado em single. Até que vim a entender a letra: em países de língua inglesa, o refrão
"suck, baby, suck, give me your head" jamais poderia tocar no rádio! Já a frase "forget that I'm 50 cause you just got paid" ("esqueça que tenho 50 anos, pois você acabou de ser pago") viria a assombrar David Bowie em 1997, por razões óbvias.


"Time" é uma bonita balada, mas a gravação parece crua demais. Quase não há vocais de reforço, somente o piano, baixo, bateria e guitarra solo. A versão ao vivo de 1987 aproveitaria melhor o potencial da música, com um arranjo mais denso.

"The Prettiest Star" é uma regravação, embora pouquíssimos fãs conhecessem o original, na época. Bowie a compôs para sua então esposa Angie quando ainda namoravam. A primeira versão saiu em single em 1970 num arranjo bem mais suave, com Marc Bolan na guitarra. Aqui a música ganha vocais "do-wop" e uma levada mais sacudida, quebrando um pouco o clima de romantismo.

A influência dos Rolling Stones é confirmada numa cover de "Let's Spend The Night Together". Bowie e sua banda parecem estar se divertindo bastante com esse arranjo acelerado e carregado de sintetizadores. Essa foi a única faixa do LP a ser lançada em compacto no Brasil, com "Lady Grinning Soul" do lado B.

"The Jean Genie" nasceu de um riff criado por Mick Ronson durante a turnê americana de David Bowie em 1973. Ele havia acabado de comprar uma guitarra nova e, dentro do ônibus, estreava o brinquedo improvisando um blues:
"We're going bus, bus bussing, going bus, bus, bussing" e todos cantavam juntos. Por muito menos, John Lennon e Carlos Alomar ganhariam créditos de co-autoria por "Fame" em 1974, inaugurando uma fase mais generosa de Bowie no reconhecimento a seus parceiros. Aqui, Bowie aparece como único autor. Até 1973, era raríssimo alguém assinar alguma música com ele (John Hutchinson diz ter ajudado a compor "Space Oddity" em 1969, mas também não foi creditado). Essa não é nem de longe a melhor faixa do disco, mas por ter sido gravada primeiro, saiu em single antes do LP e tornou-se a "música de trabalho" do álbum. Inclusive, ganhou um clip promocional dirigido por Mick Rock que, na minha opinião, é o melhor de Bowie. Confiram.

O LP fecha com outro grande momento do pianista Mike Garson: a já citada "Lady Grinning Soul", uma linda balada em homenagem a Claudia Linnear, que também inspirou "Brown Sugar" dos Rolling Stones. Curiosamente, Bowie nunca a cantou ao vivo, mas recentemente a incluiu na coletânea "iSelect", um CD com músicas escolhidas e comentadas pessoalmente por ele.

Como se a sofisticação do conteúdo não fosse o bastante, também a capa tornou-se uma obra à parte, inclusive com custo encarecido pelo uso da cor prata. O líquido que escorre no ombro de Bowie já suscitou interpretações bem sugestivas. A maquiagem do raio foi copiada do símbolo da Panasonic e desenhada pelo maquiador Pierre Laroche, sob orientação de Bowie. Esse é o visual mais lembrado e imitado pelos fãs – é difícil não aparecer alguém pintado como "Aladdin Sane" nas platéias de seus shows pelo mundo – mas o próprio Bowie nunca o usou uma vez sequer no palco. Somente na sessão de fotos e nada mais.


Comentários

  1. Um dos melhores álbuns de David Bowie, sem sombra de dúvida...

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  2. E o texto do Emílio, como já era de se esperar, ficou excelente. Parabéns!

    Estou muito empolgado com o blog, acho que estamos gerando conteúdo de ótimo nível.

    Obrigado a todos que têm colaborado.

    Vamos nessa!

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  3. O Bowie deve ser o único artista a transitar por tantos estilos e mesmo assim ser bom em todos !!

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  4. Lembro de ouvir o Bowie há muitos anos atrás quando o Kid Vinil apresentava o Som Pop e fez um comentário sobre os relançamentos dos discos do Bowie e logo após passou alguns vídeos dele da década de 70.Pirei e fui logo no outro dia nas lojas a procura dos discos de vinil ainda e fase boa!e viva Bowie!!rssss abraço a todos

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  5. Um baita disco. Esse e o Diamond Dogs são excelentes. parabéns pela resenha

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